quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Rejeição dourada




Eu podia ver as fivelas douradas da sandália cor-de-rosa bebê refletirem no meu rosto gordinho e molhado. As últimas imagens que tenho de mamãe são essas. Tudo, tudo... dourado.
A aliança era dourada quando - me pegando no colo com certo esforço -  mamãe cravava o anel de recém casada em minhas dobrinhas de criança obesa. Lembro-me que me colocou na escada de madeira marrom com um resquício de verniz tímido e calejado. O jardim se estendia em frente à casa como uma imensidão verde que, após eu ser acomodado às escadas com uma carta na mão, a imensidão se tornava homérica entre mamãe e eu. Eu via as fivelas douradas da sandália cor-de-rosa bebê. Elas brilhavam junto à aliança dourada.
Hoje, lembro de minha mãe dourada. Mas não lembro de seu rosto, nem de seu cabelo, muito menos de seu cheiro. Lembro-me do cheiro das flores. As flores que estavam no jardim da casa quando mamãe se afastava. Elas exalavam um cheiro calmo e macio, assim como o cheiro gostoso que a chuva fazia desprender da terra, como se quisessem me tranquilizar daquela dor que sentia. Dor essa que muito sentia, sim senhor, mas não entendia. Hoje entendo que era a dor da rejeição. Talvez uma das piores dores que possam existir.
Estou habituado, no entanto, a senti-la. Quando mamãe me largou, naquela pensão, eu tinha apenas quatro anos. A criança obesa, sozinha, sentada na escada com verniz tímido esperando algo que não sabia o que. Só sabia que esperava. Acho que me adiantou esperar, já que uma velha roliça saiu na varanda, fitou-me como quem olha uma nova correspondência. Eu a olhei, rosado e molhado, no rosto e nas calças. Mamãe havia dito para não me levantar até que abrissem a porta da casa e viessem me apanhar. Precisei urinar. Urinei. A velha roliça abriu a porta e a urina ainda estava quente sob mim. Vi que os olhos da velha fitavam a poça que me cercava. Alguns segundos se estenderam até que ela desse mais uns passos arrastando os chinelos azuis marinho e apanhasse de minhas mãos fechadinhas a carta. Ela leu, olhou para mim, para a poça, fechou a carta, me pegou pelas mãos e entramos. Assim mesmo, sem apresentação ou cerimônia.
Entramos. Olhei para aquelas pessoas ao redor da mesa e, a meu ver pueril, parecia que ninguém se conhecia. Não se olhavam, não se falavam, não faziam questão um do outro. Nem de mim.
A velha que me pegou para criar era a dona da pensão. As outras pessoas estavam ali hospedadas até conseguirem algo melhor. Ninguém perguntou quem eu era; como se não me tivessem visto, ou mesmo como se não importasse. Simplesmente, cada um se limitava a seu pedaço de pão com manteiga. Sorriam para a dona da pensão como que para agradar e se refugiavam, cada um para o seu quarto... seus problemas, suas vidas, seus pães.
Eu nunca soube o que a carta dizia. E nem quis saber. Olhá-la me remetia àquela sensação de rejeição costumeira. Eu evitava o quanto podia. A carta e a rejeição. Eu sabia que a velha roliça era minha tia avó por parte de mãe. Sabia que, após a morte de papai, mamãe havia me deixado lá porque o novo marido não me queria interferindo na vida dos pombinhos recém apaixonados, recém casados, recém conhecidos. Então, mamãe, obedeceu. Para não criar encrenca, me deixou com Tia Doronice, a velha roliça.
Cresci na pensão de Tia Doronice. Ela me dava pães, almoço, jantar, uma caminha estreita com acolchoado xadrez e até mesmo um guarda-roupas bege. Me dava, também, moedas para a condução. E só.
As pessoas da pensão salpicavam por ali e logo iam embora. Quando eu começava a ter coragem de me aproximar de alguma, elas iam. Acho que a pensão era ruim, os quartos pequenos e Tia Doronice não era lá grande exemplo de limpeza.
Eu vivia cercado de pessoas; e do desprezo delas. Era intrigante como Tia Doronice não fazia questão de se apegar. Ela me dava o necessário, mas não se importava com minha presença ou ausência. Estava comigo porque tinha que estar. Porque não havia onde me deixar. E, assim, eu cresci. Com o almoço, jantar, pão, condução, moedas, pessoas, pão, jantar, almoço, pão, condução, moedas, jantar, pão, moedas... não!
Não queria mais todas aquelas pessoas agindo como se eu fosse indiferente ao mundo. Como se meu voto não valesse, como se meu olho não ardesse, como se meu pé não doesse. Como se eu não existisse. Já não bastava mamãe dourada não lembrar de mim? Mas, para mamãe até havia alguma explicação. Afinal, ela não me via. Não se lembrava, porque não via. Mas as pessoas da pensão, Tia Doronice, esses sim me viam e, ainda assim, não me percebiam.
Cresci, então, calado, obeso, rosado e rejeitado.
Estudei. Mas, como era obeso, não fazia parte dos círculos de amizade. Eu era o gordo excluído que triturava suas lamentações com as mandíbulas furiosas de um garoto sem abraços, sem amigos e sem amor.
Tia Doronice, como que com o intuito de me rejeitar ainda mais e me deixar deveras sozinho no mundo, morreu, mais velha e mais roliça. Mal súbito. O que é natural quando se tem já oitenta e seis anos. Não senti sua morte, pois sei que ela não sentiria a minha. Mas, respeitei. Paguei e fui ao enterro, do início ao fim. Mamãe não apareceu.
A pensão ficou para mim. Ainda com as pessoas salpicando aqui e ali. Em um quarto ou outro.
E eu continuava... continuava com a pensão de Tia Doronice, com os almoços, jantares e pães. Não. Eu não queria. Mas continuava. Bem, afinal, ao menos, agora, as pessoas sorriam para mim, como que para agradar o novo dono da pensão.
Sorriam, comiam, dormiam, acordavam, sorriam...
E eu ali, ainda rejeitado, obeso, contava as moedas e os sorrisos. E, sentado na escada, ainda esperava que se ficasse ali, poderia avistar algum outro sorriso dourado se aproximar.
Contava as moedas e os sorrisos. Contava os dias para o dia dourado, tão almejado. Contava, contava, esperava, contava... contava, por fim, meus dias rejeitados se acabarem em triste e esquecido pó acinzentado... sem amor, sem saudade, sem dourado, sem nada.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A paz.

(Que fique claro, essa postagem é apenas um comentário).





Todos os elementos deste planeta me inspiram e a paz, com certeza, é apenas um "nariz de cera", como dizemos no teatro, de toda essa sintonia. É apenas a introdução do espetáculo que é, finalmente, a busca pela felicidade.