terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Viver a Morte... Matar a Vida



A sala de jantar ecoava pequenos ruídos mortos de garfos sobre o prato. As quatro pessoas não tão famintas guiavam os garfos automaticamente para a boca, repousavam-no no prato. Automático boca, repouso prato. Automático boca, repouso prato. Assim, desta maneira que, todos os dias, a família Gouveia fazia suas refeições. Desta forma, também, eles se banhavam, dormiam, repousavam, trabalhavam... de maneira morbidamente gelada. Automática.
Apenas uma única - única mesmo - e exclusiva coisa habitava a mente da estranha família Gouveia: a morte.
Sim, a morte.
Por que? 
Oras, não se sabe ao certo o porquê. Sabe-se apenas que louvavam a morte como ingrediente principal para se levar a vida. O acontecimento crucial e inevitável... a importância de nossa única certeza... o preparo para o fim desconhecido... inúmeros motivos rondavam a cabeça dos que os observavam de fora.
No entanto, os Gouveia não compartilhavam sua estranheza. Apenas viviam para a morte, dando satisfações introspectivas, apenas para si mesmos e seus respectivos fins.
Assim, sem acréscimos ou subtrações, era a vida da Família Gouveia.
Em uma determinada tarde esbranquiçada de Outubro, na sala de jantar, os garfos, insistentes, ecoavam ruídos sobre os pratos. Em silêncio, os Gouveia almoçavam. E, então, repentinamente, um grande estrondo intruso atingiu os ouvidos da família. Aproximando-se, o som invadia a alma de cada um dos quatro, atravessando a mesa, os talheres mortos e os pratos meio-vazios. Pela primeira vez na vida, eles se olharam. Olharam-se espantados. Cruzaram os olhares, as almas... Tiveram medo. Em frações de segundos o estrondo se aproximava. Aquele momento, de alguma maneira, guiou-os a algumas pequeninas fagulhas de vida sem que, por nenhum momento daqueles minúsculos segundos, a morte estivesse presente... Durou apenas isso... alguns pequenos segundos.
A última visão de cada um dos quatro foi o farol do caminhão que, descontrolado, arrombava as paredes da casa, despedaçando, com o cimento, aqueles únicos e últimos olhares.
A velha amiga da Família Gouveia veio lhes tocar. Levando-lhes de presente, finalmente, a vida. A morte levou-lhes a vida. Mesmo que por frações de segundos, os Gouveia avistaram em sua tão querida morte, sua real importância: louva-se a morte, apenas e somente por conta da infinita beleza que é viver.